A escritora Raquel
de Queiroz publicou o artigo “VOTAR” na extinta revista 'O Cruzeiro' em 11 de
janeiro de 1947. Disse a escritora, pelo voto não se serve a um amigo, não se
combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz
uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível,
o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo
de tempo.
VOTAR
Não sei se vocês têm
meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se
chama governo democrático, ou governo do povo. Em política a gente se desabitua
de tomar as palavras no seu sentido imediato.
No entanto, talvez
não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser
tomada no seu sentido mais literal: governo do povo. Porque, numa democracia, o
ato de votar representa o ato de FAZER O GOVERNO.
Pelo voto não se
serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a
um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira
definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão
governar por determinado prazo de tempo.
Escolhem-se pelo
voto aqueles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas - e quão
profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos
pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete
palmos de terra da derradeira moradia.
Escolhemos igualmente
pelo voto aqueles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aqueles que irão
estipular a quantidade desses impostos. Vejam como é grave a escolha desses
“cobradores”. Uma vez lá em cima pode nos arrastar à penúria, nos chupar a
última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso.
E, por falar em
DINHEIRO, pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber guardar e gerir
a fazenda pública, mas também se escolhem aqueles que vão “fabricar” o
DINHEIRO. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos
seus escolhidos.
Pois, se a função
emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma
quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro
se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale
mais zero.
Não preciso explicar
muito este capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à
custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.
Escolhem-se nas
eleições aqueles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a
existência de todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna
de todo o interesse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo
o comando de todas as forças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as
polícias.
E assim, amigos,
quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fez
um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador,
coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma
carona e depois solicitou o seu sufrágio - lembrem-se de que não vão
proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado.
Vão lhes entregar um
poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para eles
comandarem - e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência
às ordens dos chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos
representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar,
como se nós próprios fossem.
Entregamos a esses
homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de
guerra - e a flor da nossa mocidade, a eles presa por um juramento de
fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro
Frankenstein se virou contra o seu amo e criador.
Votem irmãos, votem.
Mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e
quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais
paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva.
Porque, afinal, a
mulher quando é ruim, briga-se com ela, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E
o governo, quando é ruim, ele é quem briga conosco, ele é que nos põe na rua, tira
o último pedaço de pão da boca dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia.
E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a
ferro e fogo.
E agora um conselho
final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu
amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer
pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se
preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à
sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.
Se o obrigam a
prometer, prometa. Se tem medo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas
de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral,
você depende e tem medo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL
VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à força, e escute apenas a sua
consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha
a gente até o inferno.
BIOGRAFIA: Rachel de
Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), no dia 17 de novembro de 1910, filha de
Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz. Entre suas obras estão os
romances 'O Quinze' (1930), 'Dôra, Doralina' (1975) e 'Memorial de Maria Moura'
(1992), além de livros infanto juvenis, peças teatrais e dezenas de crônicas.
Rachel morre no dia 4 de novembro de 2003, aos 93 anos.